sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Quarto


Episódio 1 - O Canto

Vestida apenas com um curto e sujo vestidinho, e mais nada, ela brinca agachada num canto de um quarto escuro. Brinca com seu único brinquedo, uma boneca pequena e velha.

A planta dos pés descalços sobre o chão frio, duro e áspero. Com a cabeça alojada entre os joelhos, ela visualiza tudo o que conhece: seu brinquedo esfarrapado. Nada mais se vê à sua volta, além do negro difuso.

Mas um dia ela ouve na escuridão um barulho estranho e eis que surge do nada um trenzinho de brinquedo, se locomovendo pelo chão.

Enquanto ele dá uma volta nela, num impulso que mistura medo e curiosidade, ela solta a boneca, pega o trenzinho nas mãos e observa seu funcionamento. Depois, o coloca de volta no chão e ele continua seu rumo à escuridão. Ao perceber que ele está se afastando, ela engatinha um pouco para alcançá-lo, mas não consegue. Não quer abandonar o único brinquedo que conhecia até então. Na mente da menina nasce a pergunta: "Será que têm mais alguma coisa além de mim nessa escuridão?"


Episódio 2 - O Assoalho

Após um certo tempo de dúvida a menina decide se aventurar em direção à escuridão. Ela se levanta e dá seu primeiro passo. Nisso ela descobre algo interessante. Por onde ela caminha, uma luz a acompanha, iluminando à ela e onde ela já esteve. A escuridão foge à sua presença, e não volta mais.

Isso a enche de esperanças, e ela decide caminhar mais. Se surpreende quando percebe que o chão frio deu lugar à um lindo assoalho de madeira. Muito mais quente e confortável de pisar do que o chão de cimento.  Ela olha para trás e vê, sem saudades, o seu cantinho frio.


Episódio 3 - O Cabideiro

Caminhando mais um pouco, ela abre os braços e esbarra em algo. É um cabideiro. Aos pés dele, estão lindos sapatinhos de boneca. Pendurado nele está um conjunto de roupas de menina, incluindo roupa de baixo, um lindo vestido florido e até um chapéu de tecido, daqueles de amarrar, branco com pequenas flores rosas e amarelas.

Ela decide por de lado seu vestido velho e vestir as roupas novas. Ela olha para si mesma, e gosta do que vê. Uma nova percepção a surpreende, pois sua pele está limpa, macia e cheirosa. De olhos fechados, ela sorri, de simples contentamento consigo mesma.


Episódio 4 - A Escrivaninha

Andando mais um pouco, surgem dois objetos em sua frente, uma escrivaninha com sua cadeira. São muito grandes para ela, mas mesmo assim, com um certo esforço, ela sobe na cadeira e espia sobre a mesa. Lá estão uma folha de papel e uma caneta. Em pé sobre a cadeira, ela não consegue evitar o impulso de escrever -- Meu nome é ... -- Ao escrever seu nome na folha, outra coisa estranha acontece. Ela toma novo conhecimento de seu corpo e se apercebe maior. Agora ela não é mais pequena para a escrivaninha, e está sentada naturalmente sobre a cadeira. Ainda sendo criança, agora ela diz -- Eu cresci!


Episódio 5 - O Tapete de Brinquedos

Ela se levanta da cadeira e decide explorar mais a escuridão. De repente, ela quase tropeça em algo. Ao olhar para baixo, percebe que é um tapete. Ao olhar para cima, tudo o que está sobre o tapete se ilumina. Seu espanto é enorme, pois sobre ele estão um montão de brinquedos. Cavalinhos de pau, casinhas-de-boneca, piões e trenzinhos percorrendo trilhos malucos. Têm até um mini-carrossel, girando com suas luzes. Num lado têm também bolas de vários tipos. De futebol, basquete, tênis, pigue-pongue, e tacos e raquetes de vários esportes. Num outro lado ela vê instrumentos musicais de todos os tipos, trompete, violino, flauta, violão, piano e cravo. Tudo pronto para ser usado por ela. A boneca velha ficou para trás na cadeira da escrivaninha. Com o que será que ela vai brincar?


Episódio 6 - A Gangorra

Depois de tocar um pouco de flauta, jogar iô-iô, e, claro, dar voltas no carrossel até não conseguir mais, ela deita no tapete, cansada mas feliz. Quando está quase cochilando, ouve um barulho estranho, vindo de um lado do tapete que não tinha explorado. -- Tum-tum. -- Ela ouve --Tum-tum-tum-- E então uma voz de menino diz -- Droga, sozinho não vai dar. Ela se levanta e caminha em direção ao barulho e à voz. Eis que atrás de um escorregador em forma de dinossauro, está um menino emburrado, tentando brincar sozinho numa gangorra. -- Olá -- diz a menina. O menino levanta a cabeça assustado e diz -- Nossa! Que susto! Achei que era o único por aqui. -- É, eu também -- diz a menina, um pouco tímida. O garoto sorri para ela e, reconhecendo uma amiga, a convida -- Você não quer brincar de gangorra comigo? Sozinho está muito chato -- É claro, ela diz. E assim os dois se divertem à beça na gangorra. A menina pergunta para ele de onde ele veio. Ele diz que só lembrava que estava num canto escuro, brincando com umas bolinhas de gude, quando de repente passou um helicóptero zumbindo por cima de sua cabeça. Daí ele tentou ir atrás do helicóptero e, depois de caminhar por muitos lugares estranhos, acabou chegando no tapete. -- É, comigo aconteceu algo parecido, só que foi um trenzinho.-- Disse a menina. -- Nossa, como será que eles foram parar lá? -- Disse o menino. -- Não sei-- disse a menina-- Quando te vi, achei que talvez você tivesse mandado o trenzinho para fora do tapete. E respondeu o menino -- Não, não fui eu. Após um tempo de silêncio, o menino disse -- O que acha de aproveitarmos que estamos em dois e brincarmos com os outros brinquedos? E assim eles fizeram, aproveitando muito mais todos eles, agora que tinham a companhia um do outro. Do tapete agora se ouvem as risadas e os gritos de alegria de duas crianças, despreocupadas, felizes.


Episódio 7 - A cama

Os dois passam horas e horas nas brincadeiras. Se divertem à beça e um ensina ao outro as brincadeiras que conhecem. Um dia, andando pela borda do tapete, avistam um objeto branco iluminado entre a escuridão. Eles decidem andar na direção do objeto. O pouco de receio de se afastar do tapete é dissipado pela luz que continua a iluminar o caminho percorrido por eles. Chegando mais perto, ficam em dúvida se é uma cama, pois é muito alta. -- Será que existem gigantes por aqui? Ele pergunta. Ela avisa que não sabe encolhendo os ombros e eles partem para tentar entender melhor o que é aquilo. Ao darem a volta no objeto, encontram uma ponta do cobertor que vai até o chão. Sim, é uma cama e eles decidem escalar o cobertor para chegar em cima dela. Lá em cima encontram o resto do cobertor e dois travesseiros, todos gigantescos. Mesmo parecendo um pouco duro, eles  deitam no colchão e usam uma das bordas do cobertor como apoio para a cabeça. Cansados da escalada, o sono toma conta e eles adormecem. Ao acordarem, tomam um susto. Eles estão do tamanho da cama. Os travesseiros, o cobertor, tudo encolheu. Ou será que foram eles que cresceram? Não, foi a cama que encolheu mesmo. Eles descem dela facilmente e voltam ao tapete para continuar a brincar. Agora eles têm um lugar mais confortável para descansar e apoiar a cabeça no ombro do outro.


Episódio 8 - As Paredes

No tapete, as brincadeiras continuam. No entanto, a essa altura, eles já sabem quais são seus brinquedos favoritos. Brincam com eles horas a fio, sem enjoar. Sem que percebam, a cada dia estes brinquedos estão mais perto da cama. Com isso, acabam deixando de andar pelo resto do tapete. Seus percursos diários se restringem cada vez mais ao entorno da cama. Eles não notam, mas uma estrutura se forma e torno deles com o passar do tempo. Por fim, o que os envolve são paredes. Aconchegantes. Isolantes. O quarto de fechou em torno deles, e as paredes os separam do resto do mundo. Mas eles não notam pois pouco se importam. Tudo o que lhes é precioso está presente ali naquele recinto.


Episódio Final - O Sótão

Certo dia, antes de irem dormir, o menino afastou os cabelos brancos da menina, a beijou na testa e desejou boa noite. De manhã, quando ela acordou, não viu o menino no quarto. O que viu foi uma portinhola aberta no teto, e uma escada que se estendia da abertura ao chão. Uma luz estranha vinha do buraco. O menino deve ter subido por ali... A menina olhou para os brinquedos velhos, desapegada, e subiu até o último degrau da escada. Chegando lá, uma visão fantástica a atingiu. Ao redor dela estava todo o universo. A luz que ela tinha visto lá de baixo vinha das estrelas. Estrelas, nebulosas, e planetas, que formavam galáxias, e conglomerados fantásticos. Ela nunca tinha contemplado paisagens assim. Querendo ver as estrelas mais de perto, ela, ingenuamente, deu um pequeno impulso para cima com os pés. Imediatamente, o alçapão desapareceu, a gravidade deixou de atuar sobre seu corpo e ela se esqueceu de tudo. Solta, leve, flutuando pelo espaço, ela passou a viajar sorrindo em admiração por entre as estrelas.

FIM

2 comentários:

  1. Nossa, Igor, muito bom! Gostei!

    bjos,
    Tâni

    www.rosaimortal.com.br

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  2. Igor alma de ESCRITOR....
    Tô lendo e gostando......continue......já estou curioso...
    Abraços
    Marcos A. S. David

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